quinta-feira, 12 de julho de 2012


A máquina do papai batia tac-tac… tac-tac-tac… O relógio
acordou em tin-dlen sem poeira. O silêncio arrastou-se
zzzzzz. O guarda-roupa dizia o quê? roupa-roupa-roupa.
Não, não. Entre o relógio, a máquina e o silêncio havia uma
orelha à escuta, grande, cor-de-rosa e morta. Os três sons
estavam ligados pela luz do dia e pelo ranger das folhinhas da
árvore que se esfregavam umas nas outras radiantes.
Encostando a testa na vidraça brilhante e fria olhava
para o quintal do vizinho, para o grande mundo das galinhas-
que-não-sabiam-que-iam-morrer. E podia sentir como se
estivesse bem próxima de seu nariz a terra quente, socada,
tão cheirosa e seca, onde bem sabia, bem sabia uma ou outra
minhoca se espreguiçava antes de ser comida pela galinha
que as pessoas iam comer.
Houve um momento grande, parado, sem nada dentro.
Dilatou os olhos, esperou. Nada veio. Branco. Mas de repente
num estremecimento deram corda no dia e tudo recomeçou a
funcionar, a máquina trotando, o cigarro do pai fumegando, o
silêncio, as folhinhas, os frangos pelados, a claridade, as coisas revivendo cheias de pressa como uma chaleira a ferver.
Só faltava o tin-dlen do relógio que enfeitava tanto. Fechou os
olhos, fingiu escutá-lo e ao som da música inexistente e
ritmada ergueu-se na ponta dos pés. Deu três passos de
dança bem leves, alados.
Então subitamente olhou com desgosto para tudo como
se tivesse comido demais daquela mistura. “Oi, oi, oi…”,
gemeu baixinho cansada e depois pensou: o que vai acontecer
agora agora agora? E sempre no pingo de tempo que vinha
nada acontecia se ela continuava a esperar o que ia
acontecer, compreende? Afastou o pensamento difícil
distraindo-se com um movimento do pé descalço no assoalho
de madeira poeirento. Esfregou o pé espiando de través para
o pai, aguardando seu olhar impaciente e nervoso. Nada veio
porém. Nada. Difícil aspirar as pessoas como o aspirador de
pó.
— Papai, inventei uma poesia.
— Como é o nome?
— Eu e o sol. — Sem esperar muito recitou:
— “As galinhas que estão no quintal já comeram duas
minhocas mas eu não vi”.
— Sim? Que é que você e o sol têm a ver com a poesia?
Ela olhou-o um segundo. Ele não compreendera…
— O sol está em cima das minhocas, papai, e eu fiz a
poesia e não vi as minhocas… — Pausa.
— Posso inventar outra agora mesmo: “Ó sol, vem
brincar comigo”. Outra maior:
“Vi uma nuvem pequena coitada da minhoca acho que
ela não viu”.
— Lindas, pequena, lindas. Gomo é que se faz uma
poesia tão bonita?
— Não é difícil, é só ir dizendo.
Já vestira a boneca, já a despira, imaginara-a indo a uma festa onde brilhava entre todas as outras filhas. Um
carro azul atravessava o corpo de Aríete, matava-a. Depois
vinha a fada e a filha vivia de novo. A filha, a fada, o carro
azul não eram senão Joana, do contrário seria pau a
brincadeira. Sempre arranjava um jeito de se colocar no papel
principal exatamente quando os acontecimentos iluminavam
uma ou outra figura. Trabalhava séria, calada, os braços ao
longo do corpo. Não precisava aproximar-se de Aríete para
brincar com ela. De longe mesmo possuía as coisas.
Divertiu-se com os papelões. Olhava-os um instante e
cada papelão era um aluno. Joana era a professora. Um deles
bom e outro mau. Sim, sim, e daí? E agora agora agora? E
sempre nada vinha se ela… pronto.
Inventou um homenzinho do tamanho do fura-bolos, de
calça comprida e laço de gravata. Ela usava-o no bolso da
farda de colégio. O homenzinho era uma pérola de bom, uma
pérola de gravata, tinha a voz grossa e dizia de dentro do
bolso: “Majestade Joana, podeis me escutardes um minuto,
só um minuto podereis interromperdes vossa sempre ocupa-
ção?” E declarava depois: “Sou vosso servo, princesa. É só
mandar que eu faço”.
— Papai, que é que eu faço?
— Vá estudar.
— Já estudei.
— Vá brincar.
— Já brinquei.
— Então não amole.
Deu um corrupio e parou, espiando sem curiosidade as
paredes e o teto que rodavam e se desmanchavam. Andou na
ponta dos pés só pisando as tábuas escuras. Fechou os olhos
e caminhou, as mãos estendidas, até encontrar um móvel.
Entre ela e os objetos havia alguma coisa, mas quando
agarrava essa coisa na mão, como a uma mosca, e depois es-
piava — mesmo tomando cuidado para que nada escapasse
— só encontrava a própria mão, rósea e desapontada. Sim, eu
sei o ar, o ar! Mas não adiantava, não explicava. Esse era um de seus segredos. Nunca se permitiria contar, mesmo a papai,
que não conseguia pegar “a coisa”. Tudo o que mais valia
exatamente ela não podia contar. Só falava tolices com as
pessoas. Quando dizia a Rute, por exemplo, alguns segredos,
ficava depois com raiva de Rute. O melhor era mesmo calar.
Outra coisa: se tinha alguma dor e se enquanto doía ela
olhava os ponteiros do relógio, via então que os minutos
contados no relógio iam passando e a dor continuava doendo.
Ou senão, mesmo quando não lhe doía nada, se ficava
defronte do relógio espiando, o que ela não estava sentindo
também era maior que os minutos contados no relógio. Agora,
quando acontecia uma alegria ou uma raiva, corria para o
relógio e observava os segundos em vão.
Foi à janela, riscou uma cruz no parapeito e cuspiu fora
em linha reta. Se cuspisse mais uma vez — agora só poderia
à noite — o desastre não aconteceria e Deus seria tão amigo
dela, mas tão amigo que… que o quê?
— Papai, que é que eu faço?
— Eu já lhe disse: vá brincar e me deixe!
— Mas eu já brinquei, juro. Papai riu:
— Mas brincar não termina…
— Termina sim.
— Invente outro brinquedo.
— Não quero brincar nem estudar.
— Quer fazer o quê então? Joana meditou:
— Nada do que sei…
— Quer voar?, pergunta papai distraído.
— Não, responde Joana. — Pausa.
— Que é que eu faço?
Papai troveja dessa vez:
— Bata com a cabeça na parede!
Ela se afasta fazendo uma trancinha nos cabelos escorridos. Nunca nunca nunca sim sim, canta baixinho.
Aprendeu a trançar um dia desses. Vai para a mesinha dos
livros, brinca com eles olhando-os a distância. Dona de casa
marido filhos, verde é homem, branco é mulher, encarnado
pode ser filho ou filha. “Nunca” é homem ou mulher? Por que
“nunca” não é filho nem filha? E “sim”? Oh, tinha muitas
coisas inteiramente impossíveis. Podia-se ficar tardes inteiras
pensando. Por exemplo: quem disse pela primeira vez assim:
nunca?
Papai termina o trabalho e vai encontrá-la sentada
chorando.
— Mas que é isso, menininha? — pega-a nos braços,
olha sem susto o rostinho ardente e triste.
— O que é isso?
— Não tenho nada o que fazer. Nunca nunca sim sim.
Tudo era como o barulho do bonde antes de adormecer, até
que se sente um pouco de medo e se dorme. A boca da
máquina fechara como uma boca de velha, mas vinha aquilo
apertando seu coração como o barulho do bonde; só que ela
não ia adormecer. Era o abraço do pai. O pai medita um
instante. Mas ninguém pode fazer alguma coisa pelos outros,
ajuda-se. Anda tão solta a criança, tão magrinha e precoce…
Respira apressado, balança a cabeça. Um ovinho, é isso, um
ovinho vivo. O que vai ser de Joana?
 — Perto do Coração Selvagem, Clarice Lispector

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